sábado, 10 de maio de 2008

Tia Jacinta vem à janela


11.


A tarde foi passada a dar banho a Castro. Champô para cão com montes de espuma, quem diria. Seguros os dois neste festim. Outra festa assim só daqui a um mês. Dizia no rótulo. Desastradamente as portas foram ficando molhadas com os abanões do pós banho. Pollock não teria feito melhor dripping.
Castro foi agarrado pelo Tó com a segurança de um principiante. Tinha sido uma aparente boa ideia usar aquela toalha turca para secar o cão. Profecia errada. Ficou toda feita em farrapos. Os dentes do bicho adoraram o presente.
Estes estranhos e distintos novos barulhos ali ouvidos por parte de quem já se habituara a não ouvir grandes coisas daquela casa, trouxe à janela daquele sábado a Tia Jacinta. Uma velhota muito rezingona de avental vestida e de olhos semicerrados por detrás de umas gordas lentes sujas e velhas, quase tão velhas como ela.
- Ó vizinho! Vizinho! Senhor António! Está-me a ouvir? Ouça lá senhor António, mas que algazarra vai por aí? Está tudo bem consigo? Veja lá se precisa que eu chame a polícia? Quer que eu chame o 112? Está ou não está a ouvir-me, com um raio?
Num repente instintivo António chega à janela em tronco nu com o bicho abraçado a si pelo pescoço.
- Não é nada Ti Jacinta. Está tudo bem. Resolvi fazer um amigo hoje e estamos aqui a resolver uma pequena questão de limpeza, nada mais. A velha não percebendo bem aquela mancha escura ao redor de Tó, respondeu algo assustada.
- Credo! Mas afinal de contas que amigo é esse seu? Não me diga mais nada! Estão mas é os dois para aí a curtirem uma valente borracheira. Triste vida essa sua ó vizinho, triste vida…
António riu-se. Caramba. Ouviu mesmo. Um rir quase sonoro. Voltou a sentar-se perto do animal e fez-lhe festas na cabeça. Aquele tique obstinado que trazia em si ia agora transpô-lo em forma de carícias para Castro. Começava a perceber que, se calhar, o que trazia na ponta dos seus dedos tinha sempre tido uma razão para existir. Era talvez uma estranha forma de ligação entre a sua solidão matinal e a magnífica companhia actual que quase lhe provocara uma gargalhada mesmo à coisa de instantes. Abençoada bica aquela da manhã. Mas agora lembrava-se. Ainda não tinham almoçado e eram já seis da tarde.
- Quando fazemos coisas porreiras nem sentimos o passar do tempo. Pareces ser gajo fixe. Vamos ver se te aguentas à bronca aqui com o velho. Vamos lá ver.
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