quarta-feira, 14 de maio de 2008

Das conversas de mortes cruéis


21.
- Mortes, muitas mortes meu senhor. Temos relatos fiéis de que já vem rasto destes martírios desde há meses. Ficaram os corpos dos religiosos espalhados como palha pelo chão. Frei Gil tinha vindo de Parma onde esteve com cónego Alberto em importantes acordos de Paz há poucos anos. Sabendo nós que Frei Gil nos trazia importantes novidades sobre os novos pensamentos filosóficos, fraseamentos de contemplação monástica e de ritmos de introspecção através de uma nova metodologia que permitia a discussão de questões essencialmente teológicas, é uma perda irreparável. Asseguro-vos que se nos depara como uma privação verdadeiramente lamentável. Mais ainda, pois trazia consigo importantes manuscritos de Toledo sobre o sentido da verdade, da natureza e do homem. Em toda a nossa terra não havia outro igual. Frei Gil é verdadeiramente insubstituível. Com estes terríveis tempos de miséria e fome que temos passado, não são bons augúrios estes actos cruéis de terror, morte e medo que têm crescido ultimamente por aqui. Sabíamos também, de fonte segura, que Frei Gil trazia consigo alguns documentos traduzidos do árabe pelo grupo de Gerardo de Cremona e que não encontrámos em parte alguma junto dos seus restos mortais ou dos restantes padres que o acompanhavam. O Templário após escutar com enorme atenção as palavras de Frei Lourenço, na sua figura alva e de barba clara bem cerrada, questionou de seguida o clérigo.
- Frei Lourenço, de si necessito informações que nos possam levar rapidamente à solução que todos desejamos. Esta mortandade cruel só trás pasto para as sementes do Demónio. As suas estranhas implicações nos medos do povo não são difíceis de explicar. Contudo, preciso que nos acompanhe ao local exacto onde os corpos foram encontrados. Temos recebido sinais e informações que nos fazem desenhar três possíveis conjunturas para toda esta continuada carnificina. Uma hipótese é a de que um desorientado e mal intencionado grupo de árabes ande a semear vinganças por onde passa. Pouco credível mas ainda assim, possível. Outra, mais elaborada, não vos posso dar ainda conta dela. Teria tamanhas implicações no seio da nossa Ordem que seriam catastróficas nas formas como os nossos reinos terrestres se estão a desenvolver. Finalmente, a terceira. Pensamos que possa ser um grupo de perigosíssimos malfeitores assassinos que praticam cruéis rituais pagãos sem aparente ligação a qualquer ordem, religião ou crença divina. São frios, metódicos e actuam de forma muito rápida. Entendemos que estão a ser liderados por um estratega muitíssimo inteligente e com regulares hábitos de matança. Necessitamos dos corpos dos defuntos para neles investigarmos o tipo de feridas e outras maleitas que lhes foram provocados. Outros sinais pretendemos também encontrar. Tudo aquilo que nos possa conceder pistas para sabermos, afinal, com quem estamos a lidar. Precisamos também dos seus membros. Disseram-nos terem sido cortados e abandonados perto dos corpos. A roupa é também fundamental! Será prudente não dar conta da visão destes processos de análise aos outros párocos. Trataremos de tudo sem necessidade de alastrar com detalhes o que iremos fazer. Precisamos de uma sala com luz, muita água, panos limpos, material de corte e outros preparos que vos indicaremos. Pela estranheza de métodos usados não vos deterei nem maçarei com pormenores daquilo que vamos realizar. Apenas vos posso garantir que qualquer resposta que obtivermos será de extrema utilidade para nos colocar no correcto caminho.
As observações e análises feitas pelo Templário aos restos mortais de Frei Gil, com ajudas notáveis de mais dois dos seus companheiros, foram esclarecedoras. Não restava a menor dúvida que os membros superiores foram cortados ao nível dos pulsos antes do corpo ter sido pasto das chamas. Estes apresentavam cortes limpos e seguros, feitos sem hesitação, com recurso a lâminas fortes e bem afiadas. Seriam seguramente machados dos que se manuseiam com ambas as mãos com pega em madeira. São normalmente usados pelos cruzados ou sarracenos. A força do embate na zona dos pulsos é notória, tornando-se mais esbatida para os lados o que identifica a curvatura da lâmina. A segurança e certeza no corte não deixavam dúvidas. O machado foi manipulado com ambas as mãos. De mais fácil compreensão foram as marcas seguras de adaga encontradas no pescoço. Eram assassinos de origem árabe ou moçárabe.
Existia a quase certeza que um grupo mais extremista de berberes de uma tribo de Zanatas, que deram brilhante ajuda na luta contra Afonso VIII de Castela na batalha de Alarcos, tinha avançado rumo ao nosso reino via Guadiana. Por razões ainda não totalmente esclarecidas, terão começado a agir por conta própria. Existem relatos desde há alguns anos que confirmam o aumento do número de mortes trágicas sem aparentes motivos. Seria bem possível que este mesmo grupo se tenha conseguido introduzir pelo restante território vindo assim a espalhar estas ondas de terror continuada desde então. Alguns relatos deram conta desta fama em deixar “assinatura” com a falta dos pés e das mãos dos mortos. Acabar desta maneira com a vida dos outros parece ser demasiada bizarria para que mais do que um bando de amaldiçoados procurasse idêntica rubrica selvagem. Quanto às cabeças dos mortos, todas apareceram com a parte do cabelo cortada e arrancada de forma violenta deixando a caixa das ideias à distância do toque. Começavam a ser demasiados sinais de idêntica conformidade. Parecia ser o que meu senhor Fernando Dias procurava com tamanho empenho e dedicação. A certeza era algo que desejava para que o engano na resposta não fosse possível. E estes inumanos tinham de ser travados o quanto antes, nem que isso custasse a vida de todos os seus guerreiros.
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