sábado, 10 de maio de 2008

Olho por olho, dente por dente

10.

Que bom seria comer agora qualquer coisa. Já a manhã vai dentro e a barriga experimenta um vazio desconfortável.
Algumas pessoas sorriem à passagem destes dois. Admiram a forma respeitadora como Castro segue os passos de Tó. Parece que nunca tinha feito outra coisa na vida. Ser o pajem daquele cavaleiro estava-lhe escrito no pedigree.
Para quem acredita em reencarnações pode bem ser este um caso.
Castro já tinha sido pajem medieval. Lembra-se de terras rugosas e duras. Cheiros fortes e odores a sangue seco das lutas em que se envolviam naqueles tempos os cavaleiros nobres. Tudo era mais lento. As voltas das suas vidas eram um labirinto de emoções. A vida tinha outra medida. Ninguém suportava mouros e gentes vindas daquelas terras do sul. Lavavam-se os corpos dos guerreiros mortos das suas pertenças e levavam-se para valas comuns por causa de doenças e pestes. Eram tempos de lutas, conquistas, sangue e músculos. Os fracos não resistiam. As mulheres serviam as causas dos homens e as crianças eram apenas vistas ora como estorvo, ora como pequenos adultos que não eram.
Essa invenção moderna chamada infância é estatuto de países ricos do chamado primeiro Mundo. E são estes que deixam abandonados ao seu triste destino os que chamam do Terceiro. Se não fosse tão miserável dir-se-ia ser patético.
Era também tempo de conquista. A terra tinha o valor supremo, a pertença. Os reinos dos homens que falavam línguas de horror eram tomados ou conquistados pela lei da matança cruel. Muitas vezes no escuro das noites frias e húmidas, tendas rotas e mal seguras fugiam como papagaios descontrolados com medo da morte.
Castro recorda-se de que numa tentativa de tomada de um pequeno grupo de assaltantes vagabundos foi precisamente um pedaço de tecido rasgado esvoaçante vindo da direcção do seu senhor e dos guerreiros que o acompanhavam que lhes deu o alerta. Caramba. O resto nem sabe como explicar. A um desses vagabundos chamavam-lhe Sabiano Raimundo. Era nem mais nem menos que um dos maiores assaltantes e assassinos de donzelas que por aquela região habitava. Muitos julgavam que os seus cruéis hábitos de matança indiscriminada eram de origem árabe. Puro engano. Era um diabo em forma de gente que com mais de doze vagabundos que o seguiam em busca de vingança pela miserável condição humana em que existiam, tomavam desforra em todos os desgraçados que lhes apareciam desprevenidos pela frente. Esta forma básica de se desforrarem nos fracos das sevícias sofridas era a sua estranha forma de vida. Naqueles tempos era assim. Olho por olho, dente por dente. Literalmente.
Como seria se a Humanidade soubesse que os nossos cães são almas reencarnadas de vidas já vividas noutros tempos em forma de gente? Maior mudança só se soubesse o dia e a hora exacta da nossa morte.
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