segunda-feira, 12 de maio de 2008

O dia estava ganho


16.


A música tocava na rádio e enchia o ambiente como parceira assídua que sempre tinha sido. O som saía das colunas envelhecido pelos anos que estas tinham. Não era tanto a qualidade das melodias mas sim a companhia que conseguem proporcionar, que fazia com que Tó arriscasse rodar o botão para a direita. E aí estava a sonora companhia. A estrada ia passando e Castro resolvera dar novamente ar à língua, que os frescos ares marítimos iam chegando. Davam-lhe alimento e aconchego. Já não se recorda da última vez que vira o grande azul. Isto de ser cão provoca estranhas misturas na memória. Julga que os anos passaram e por vezes foram semanas. O que parecia ter sido antes de ontem, já fez mais de dez dias. O tempo assim não é como uma flor. Sem ter ninguém para partilhar, um cão sente-se só, e essa coisa do tempo é maleita humana bem ruim. Os caninos preferem rasteirar a sua existência com a procura de abrigo, seja na companhia de colegas de susto, seja na segurança de humanos que os saibam respeitar. Sim, pois é de respeito que se trata.
- Está mesmo um dia bom para merendar. Então que me dizes Castro. Já caía bem o aconchego de uma bucha. Vamos aproveitar aquelas sombras que o sol já vai alto.
Castro ladrou como se respondesse afirmativamente ao António. O Taunus parou, a merenda preparada com dotes de gourmet, estendida numa mesa de pedra granítica, e ali se prepararam os dois para um almoço em forma de lealdade. Ali perto ficava um lugar que António Júlio bem conhecia dos tempos em que passeava com a sua Alzira. Castro ia também conhecer a gruta da lapa de Santa Margarida, e em silêncio beber a paisagem.
As areias doces da Prainha estavam lá em baixo a gritar por eles. Molhar os pés iria cair que nem ginjas. Dizem fazer bem ao coração. Certo estavam os dois que os seus batiam e respiravam ares bem mais arejados que os dos últimos tempos. A brisa serena, as crianças deleitadas com as brincadeiras deste dia de Verão antecipado.
Castro correu como louco até à beira mar. Olhava o seu reflexo e batia-lhe com a pata direita para o desfazer. Jurou ver-se pajem retratado nos ruídos da imagem assim criada.
Seria tão fresco como um beijo de Alzira, senti-la assim ali tão perto, como se os estivesse a olhar do alto da gruta.
- Só mais um bocado, estás a ouvir? Já lá vem o escuro da noite e ninguém nos faz companhia, só mesmo o anoitecer e a gruta lá no alto. Sacode-te bem.
Castro correu mais dez milhas, ou vinte, ou trinta, nem se lembra. Atirou-se para cima do Tó e só recorda o som forte das gargalhadas sonoras que este lançou já no escuro.
O dia estava ganho!
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