segunda-feira, 19 de maio de 2008

As perfeitas coisas da terra


25.

Ao olhar, como sempre faz, as tristes gordas da banca que Ti Maria tem à entrada do café, reparou na notícia que em vários jornais vinha carimbada. A notícia da morte de Rainier III do Mónaco.
Nada nem ninguém lhe passa impune, seja príncipe, princesa, rei ou rainha, sem-abrigo, criança ou pastor. Aquela sua ida ao castelo iria ajudar a ver o destino mais de perto. A passagem das horas do dia fizeram-lhe recordar Alzira, de forma terna, como sempre. Como lhe confidenciou, um dia, que a sua vida tinha ficado sem fôlego quando a sua paixão de infância desapareceu para sempre no firmamento. Ela e Marilyn eram almas gémeas que sabia unidas no pensar. Belas por fora, a todos hipnotizando como estátuas gregas de ideais de perfeição. Sensíveis e perturbadas no seu pensar as coisas da vida como frágeis pétalas de rosa receosas do orvalho matinal. As perfeitas coisas da terra são como mártires nas mãos de Midas.
Esta notícia sobre Rainier III fez-lhe lembrar, sem que o tivesse imediatamente percebido, que a paixão esmagadora que essas raras pérolas da Natureza provocam ao comum dos mortais são como presentes envenenados que mais tarde rebentarão nas mãos de Midas. Foi assim com a sua princesa americana que acabou em tragédia num despiste brutal. Foi assim com Marilyn a quem os segredos que foi acumulando sobre as vidas e ligações perigosas da família do presidente Kennedy certamente lhe selaram o destino. Foi assim com Diana, princesa do povo, alma de uma nação, tristemente desaparecida de forma cruel, fugindo do nada, procurando a alegria. Foi assim com Alzira a quem a doença cruel consumiu, deixando Tó num tormento que só as almas que tocaram a perfeição divina em vida terrena podem saber como dói.
Foi assim meditando até à subida do largo da Sé. Não resistiu ao apelo da imponente fachada da catedral que parecia chamá-lo baixinho.
- Vou repousar um pouco na fresca placidez do teu retiro.
Entrou, sentou-se num dos bancos corridos mais próximos da porta de entrada e ali ficou por instantes em contemplação e descanso. Subitamente, algures do seu espaço mais interior, ruídos de correrias e algazarra, pouco condizentes com este espaço de recolhimento, cresciam em sua direcção de forma acelerada. Da penumbra à qual os seus olhos já se tinham adaptado viu um homem, vigilante da Sé, correr agarrado ao seu chapéu atrás de dois cães que de forma sorrateira se tinham esgueirado para o interior da catedral. Os animais, com a língua de fora, pareciam gozar o divertimento de uma vida naquele jogo de toca e foge que faziam com o senhor guarda. António Júlio num primeiro momento não reparou mas foi rápido a perceber. Nesse dueto canino o “seu” Castor conduzia as rápidas mudanças de direcção com a certeza dos desvios. Ainda pensou em chamá-lo mas vendo que a sua felicidade canina se encontrava, naquele momento, no infantil passatempo, deixou-o correr de satisfação em direcção à saída do monumento mais o seu amigo. Estavam felizes por gozarem a simples vida de cão naquele corrupio atrevido.
- Viste mamã, aqueles cãezinhos fugiram do senhor guarda! Ainda bem que ele não os apanhou, não foi mamã? Ainda bem!
Aquela voz de criança, atenta ao jogo da apanhada que tinha sido ganho pelos dois velozes animais, suou a Tó de forma tão cristalina que ele, de forma inconsciente, se voltou para trás na sua direcção. Era uma menina de cerca de cinco anos de idade, não mais, de mão dada à sua mãe. Trazia um pequeno chapéu verde-claro a proteger-lhe os cabelos quase negros que lhe caíam pelos ombros. Um casaco a condizer com a cor do chapéu e umas calças de ganga azul clara. A mãe esboçou um leve sorriso na direcção de António Júlio, percebendo o efeito que as palavras da criança tiveram nele. Voltou-se para a fachada da Sé e nela entrou levando a menina consigo pela mão.
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