sexta-feira, 16 de maio de 2008

Coração divino


22.

Vi por estes dois dias em meu senhor Fernando Dias pensamentos escuros que não conseguia esconder pois as janelas do seu olhar assim o impediam. Soube ainda, pois assim mo confidenciou, que crianças ainda pequenas foram as primeiras a descobrir os corpos de Frei Gil e dos outros párocos e a dar deles aviso. Usaram as partes decepadas encontradas para se entreterem em macabras ocupações de pequenas almas. Certo é que a perdida mão de Frei Gil, essa, nunca foi resgatada. Fomos durante este tempo visitar as cercanias de Rates. As bonitas paisagens contrastavam com as muitas dificuldades que os seus habitantes desejavam poder esquecer. Muitas questões foram pelo meu senhor Fernando colocadas, todas esbarravam nas primeiras formas receosas de silêncio depois entreabertas por mais seguras maneiras de dar conta das aflições e de outras perdições por si comportadas. Os pequenos corpos de gente, primeiros os rapazes e raparigas depois, eram sempre mais velozes em connosco procurar contacto. Mesmo quando à beira dos caminhos nos vinham descobrir eram sempre em muito maior número os rostos dos mais novos do que dos adultos. Escondidas vinham suas faces em barrentas aparências. Corpos vestidos com roupas de argilosas cores, cabelos emaranhados ao vento das poeiras, pés descalços e tantas vezes feridos, mãos sentidas e estendidas a pedir um qualquer aconchego para a boca. Não eram estes tempos de felizes recursos. Os animais andavam maltratados por uma estranha maleita que tinha acabado com quantas varas por ali pastavam. Os porcos ardiam em febres e diarreias imensas finalizavam com eles. Também as crianças desenvolviam febres. Dizia o meu senhor que a rataria era tanta e tamanha que mais eram as dentadas que embutiam nas crianças do que as mortes sofridas no seio das suas hostes. Foi neste ambiente que as perguntas e respostas se foram encontrando. O meu senhor sempre colocava as suas conversas em pergaminhos que ele mesmo preparava, não fossem estas perderem a razão em forma de esquecimento.
Voltámos para o mosteiro passados estes dois dias. A velocidade com que soltou os cavalos na sua direcção a mim próprio espantou. Teria deduzido algum juízo no seu, mesmo se por ali só tivéssemos visto tanta falta dele. Força espantosa tem este meu senhor Fernando Dias. Vai buscá-la bem no fundo do seu humano coração. A esta alma nunca vi tratamento desonrado a iguais figuras, a iguais caminhantes deste cinzento e perpétuo caminho. A honra das gentes faz-se e constrói-se com esta coragem em ser caminheiro do saber. E isto não se pode nem consegue ensinar. Nasce com os verdadeiros Homens e Mulheres na terra como se um coração Divino lhes tocasse no peito essa canção.

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