quinta-feira, 8 de maio de 2008

Marilyn

4.

Dormir, adormecer. Ser levado pelo escuro quentinho que nunca falha. Alzira outra vez. Mas que raio. Não consegue fazer desvanecer a sua marca. Foram tantos anos de conversas sobre coisas que nem as coisas teriam vontade de relatar. Trocas de ideias, idas e passeatas, mãos quentes sentidas, silêncios tantas vezes partilhados, o sonho nunca cumprido chamado Francisco ou Francisca, tanto se lhes dava. As pedras dos sonhos afinal são bem pesadas e o seu cinzento faz-se sentir como um forte vento, carregado, precipitado, dormente…
Dormir, adormecer. António Júlio não consegue a d o r m e c e r. Adormecer toca na sua alma uma música bem vincada que assim lhe soa:
- A dor, mereces ter a dor, mereces ter a dor desse pavor, desse teu horror em ser melhor, em afastares os fantasmas da dor, da tua dor, do teu merecido torpor, desse sal que te tempera o suor.
- A dor, és um verdadeiro horror. A dor, mereces ter dor, terror, essa dor de adormecer, de merecer adormecer sem dor, só adormecer, só, sem ter, sem te ter, sem conseguir apagar a dor sentida no lençol já gasto.
- Calor, este calor, adormecer com calor, transpirar pelos poros as cervejas e todos os copos bebidos sozinho, acompanhado dos tremoços dos dias sem destino. Mereces a dor. É o verdadeiro horror de adormecer sozinho e merecer sozinho o vinho dessa dor.
Lá está a porra da canalha a ouvir aquela trampa de música aos berros sem deixar ninguém descansar. Porra para os putos que só sabem gastar a juventude sem sentido. A Alzira gostava das músicas de Marilyn. Daquela música do filme em que ela deixava o vento do metro levantar-lhe as saias e mostrar as pernas ao vizinho. A Alzira sabia bem do que gostava. Dum bom filmezinho é que era.
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