domingo, 11 de maio de 2008

Sabiano Raimundo


12.

Sabiano Raimundo tinha uma mente inquieta. Olhava para as coisas como se fossem imateriais, como se a realidade à sua volta fosse indigna de tamanha figura. Mas que figura. Donzelas indefesas eram por si pura e simplesmente chacinadas. Serviam de alimento à sua ferocidade. Os maltrapilhos que o acompanhavam eram rudes, uns miseráveis meliantes que se afastavam da loucura com a frieza dos seus golpes mortais. Sabiano era para eles um Deus Pai que seguiam com fé inabalável. Os seus actos cruéis eram a forma de sentir que estavam vivos. Dormiam ao relento, pilhavam e matavam qualquer alma que se atrevesse a passar no seu caminho. Deixavam espalhados os corpos. Chegaram ao ponto de incendiar pequenas aldeias pela noite apenas para se deleitarem com os cheiros, as cores das chamas, os barulhos da destruição, o choro das almas inquietas e aterrorizadas dos seus habitantes. Dizem que no seio deste bando dois deles chegaram a praticar actos de canibalismo, tão animais eram os seus hábitos.
Foi pela calada da noite que um violento temporal se abateu pelas terras perdidas do centro do País. Árvores chegaram a ser arrancadas pela raiz. Pequenos leitos de ribeiros e fios de valadas transbordavam carregados de escuras e rápidas cascatas bravias. Os campos estavam ensopados e os estrondos dos trovões saíam do escuro céu como se o divino destino tivesse vontade de os engolir. E o vento?! Rajadas traziam a água com tamanha violência que estalavam as faces e o rosto nem olhos podia abrir. As tendas do grupo de cavaleiros que há semanas seguiam as pegadas e as destruídas vidas que o grupo de Sabiano Raimundo deixava atrás de si, voaram pelos ares. Algumas estavam já gastas pelo uso dos anos. Outras, de mal montadas que estavam, resolveram acompanhar as primeiras. Tudo num emaranhado de água, lama, galhos e árvores pequenas rodopiava e era iluminado pela luz clara dos relâmpagos celestes com frequência ritmada.
Quer o grupo de Sabiano quer o dos seus perseguidores sofria com esta fúria da natureza. Empapados e preocupados em manter os animais serenos, quer uns quer outros mal perceberam que a distância que os separava era bem reduzida. Vinda dos céus e do nada naquela escura noite de forte tempestade, uma mancha voadora com forma de asas de morcego cai violentamente por cima de dois destes bárbaros assassinos que de forma louca gritaram alto e a bons pulmões pela protecção de São Columbano. Outros juraram ver o Demónio engolir Demêncio e Lucrácio e estavam já de joelhos quando o chefe gritou como pirata dos mares.
- Calai-vos bando de inúteis! Não fossem vós excremento de bode e as vossas cabeças rolariam já cortadas por minha adaga. Isto que dos céus voou é sinal de que alguém nos persegue. Alguém que se encontra bem perto. Aproveitemos este presente e preparemos o ataque antes que sintam o dia fulgir. Preparai as armas e ataquemos em grupos de três. Sigam-me!
O grupo de miseráveis assassinos preparou, qual matilha furiosa e bem coordenada, o ataque aos cavaleiros que os perseguiam. Deitaram-se e rolaram pelas enlameadas encostas como víboras ensinadas. Farejaram com a ajuda dos seus corcéis o local onde o grupo perseguidor se localizava. Perceberam que caso fossem suficientemente rápidos, a tempestade brutal que tinha sido tão útil no aviso ainda seria útil na manobra de camuflar o seu propósito. As bestas que consigo traziam fizeram o trabalho final. Tinham conseguido cercar o grupo de cavaleiros sem que estes tivessem dado conta. De forma segura e cruel as setas velozes saídas de suas bestas iam certeiras aos alvos como tão certeira a bátega cruel lhes ia ensopando os corpos. E eram mais de trinta as almas que os perseguiam. Mais de trinta ficaram caídas naquela noite, esquecidas, massacradas, mortas e trinchadas dos seus haveres e da sua luta. Alguns nem disso deram conta. Outros ainda feridos resistiram. Mas as feridas e os escuros vultos que lhes caíam em cima vindos do solo, como fantasmas de lama, eram adversários demasiado poderosos naquele contexto trágico.
Eram estas estranhas e miseráveis ajudas do Demónio que faziam crescer em fama e terror o bando de assassinos de Sabiano Raimundo. Diziam ser assim um dos seus rituais de matança. No fim de cada chacina urinava por cima dos corpos dos cadáveres, mas isso ninguém pode provar. São as ideias e línguas do povo, esse criativo boateiro.
Castro ainda se lembra do cheiro e do quente dessa chuva amarelada que lhe regou a pele. Tão diferente deste banho suave que António acabara de lhe servir. Tão diferente.

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