quarta-feira, 21 de maio de 2008

Castanho derretido nos dedos

29.


A mãe de Alzira não conseguiu refrear a dor da filha. Fechou-se à chave no quarto e só ameaçada resolveu abrir a porta, era já meio-dia.
- Olhe lá, mas a menina está doidinha ou quê? Já nem dá conta das horas a passar? Acha bem estar toda a manhã fechada no seu quarto? E ainda por cima à chave? Mas estará boa da cabeça, por acaso? Vá imediatamente tratar de se arranjar que hoje temos visitas! E não se fala mais neste assunto. Onde é que já se viu um disparate destes?
Alzira fechou a sua dor no fundo da alma e obedeceu a sua mãe. Mexeu-se, sabe Deus como. O caminho do quarto de banho e do regresso ao quarto foi feito sem dele se lembrar, de forma mecânica e ausente. Toda ela estava dormente, insensível e letárgica. As tias vinham do Porto para almoçar e passar uns dias de repouso na quinta. Eram solteiras e não raras vezes punham-se à estrada até Santo Tirso para visitar a sobrinha e gozar os prazeres das conversas com a irmã mais velha, abrigadas na sombra acolhedora do imenso alpendre da casa. Estavam a acabar o curso na faculdade de letras. Eram graciosas, e nem sempre se tinha o prazer de ter gémeas bonitas na paisagem daquela casa.
Alzira lembra-se bem do tempo já algo distante, em que, com cada uma do seu lado, davam longos passeios pelo jardim da vila. Contavam-lhe histórias, faziam-lhe tranças como se fosse sua boneca de brincar, mas em pele e osso. Jogavam com ela às escondidas e traziam-lhe em segredo chocolatinhos e docinhos de leite que as três acabavam por comer em silêncio. Depois sujavam-se as saias com o castanho derretido nos dedos e ia-se passar água na fonte do parque, não fosse a mãe e irmã mais velha dar conta daquele pecado.
Estavam agora crescidas, mais velhas, um pouco mais distantes. Alzira até as tinha guardado nas páginas do seu diário, com ternura infantil. Sempre foram amigas e companheiras. Mas sempre foram presas fáceis de um país que lhes molda o destino, como barro dócil e macio. As tias não eram Marilyns, nem traziam em si escondidos tesouros insondáveis ou asas de um imenso crer. Eram simpáticas tias estudantes, já com destino escrito no casamento que está para chegar.
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