terça-feira, 13 de maio de 2008

Pastelinhos de bacalhau


18.

A porta bateu. Castro levantou a cabeça e puxou a perna de Tó pela bainha do pijama. Rosnou. Não havia outra solução. Sair do torpor do sofá e carregar o corpo até à porta, pois nesta alguém continuava a ensaiar solos de bateria.
-Ti Jacinta? Ora essa! Bom-dia.
António Júlio nem sabia as horas da manhã quando se fez de forma mecânica à porta, e não era seguramente aquela senhora que esperava ver depois do sono.
- Quer um pastelinho senhor Tó? Estive cá a pensar que o vizinho tem andado meio estranho. Acaso terá fome, disse a mim mesma. Ontem meti mão na massa e passei a tarde a fritar uns pastelinhos de bacalhau. Trago-lhe aqui uma dúzia deles para que possa matar saudades. Olhe que melhor não há quem os faça, isso lho garanto eu!
Por esta altura Castro resolveu ir tratar um seu assunto premente e como independente tinha sido toda a sua vida, resolveu aproveitar a porta entreaberta para se ir aliviar.
- Ai credo, Jesus, Nossa Senhora! – Ti Jacinta não conseguiu evitar um ligeiro salto para trás e as palavras saíram assim sem travão pela boca enquanto o cão preto, agora de pêlo lustroso e brilhante, lhe passou tangente ao avental.
- Calma vizinha, não se assuste. Por favor, cuidado, não caia das escadas abaixo.
Segurou o pratinho do deleite que a velhota trazia nas mãos, não fossem eles decorar o tapete da entrada da sala, e fez-lhe sinal para entrar.
- Ó vizinho, deixe-se estar. Sabe, aproveitei os pastéis para vir saber se estava tudo bem consigo. Como tem andado por aí tanta coisa ruim. Assaltos então, nem é bom falar, pois não? No outro dia parecia que um estranho o empurrava da janela abaixo. Pensei se não seria algum gatuno e o vizinho, com receio, arranjou a desculpa das limpezas? Olhe que só fui para a cama ontem depois de o saber por cá. Não vai levar a mal, pois é? Pois é vizinho? Não vai levar a mal? – Insistiu até obter resposta a tanto verbo.
António achou piada a esta forma pouco comum de dar início ao dia. Agradeceu depois à idosa.
- Muito obrigado pelo seu cuidado, Ti Jacinta. Estou em crer que nenhum outro pastelinho me iria saber tão bem quanto os seus. Quanto àquilo de anteontem, é verdade que já muito tempo passou desde que tive visitas. Sabe, arranjei um amigo de quatro patas, muito simpático por sinal. Foi ele que a assustou quando saiu pela porta. É um cão preto simpático. Chamei-lhe Castro. Pareceu-me bem.
A Ti Jacinta abanou a cabeça consentindo com tal ideia. Um cão na vizinhança até seria boa companhia por causa da malandragem. Dá sinal com a voz e pode ser que assuste alguns desses tontos que andam por aí só a fazer parvoeiras.
- Boa ideia senhor António! Boa ideia! Olhe que não seria nada mau se todos pensassem assim. Um bicho desses sempre ajuda a manter as más companhias afastadas. Agora vou-me embora pois deve ter muitas coisas para fazer. Até mais logo vizinho, até mais logo.
António Júlio olhou para a senhora com um sorriso na face e despediu-se segurando na maçaneta do trinco.
- Muito obrigado pelo seu cuidado. Até mais logo. Tenha cuidado ao descer as escadas, segure-se bem, veja lá não caia.
A senhora lá foi descendo e acenando com a mão esquerda enquanto se agarrava ao corrimão de madeira. Tinha já desaparecido para dentro da porta de sua casa quando um barulho suave se fez ouvir lá em baixo com cadência compassada. Era Castro que vinha a subir, já aliviado, em direcção ao cheiro dos pastéis.
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